Cheguei neste mundo como muitos de vocês chegaram.
Deixei o corpo da minha mãe graças a uma cesárea realizada dentro de um hospital com nome de Santa. O médico que me tirou de dentro dela me deu um tapa, deve ter dado parabéns pra minha mãe enquanto fazia isso, “Uma bela menina você tem aqui”, plau! tapa no bumbum do bebê.
E sumiu.
Talvez tenha ido descansar depois do seu dever cumprido.
Não sei o nome dele. Nem ele sabe o meu. Já deve ter trazido mais de centenas de bebês pra essa cidade maluca que é São Paulo.
Uma única pessoa responsável por mostrar o mundo trágico, sarcástico, corrido, agitado, cruel, algumas vezes amoroso, tudo num único ato.
Dizem que o bebê não chora por conta do tapa. Ele chora porque respirar pela primeira vez dói. Os pulmões funcionando pela primeira vez no mundo externo causam dor, e o bebê chora. Chora de dor, indignação, medo, pavor. Antes num lugar quentinho, escuro, confortável e de repente o trazem pra uma sala com luz branca incandescente extremamente cafona, cheia de gente estranha, e uma mulher destruída, deitada na cama com as pernas em forma de V é o único cheiro que ele reconhece, ela tem dor também, ela o reconhece.
É inevitável pensar que vida e dor estão intimamente ligadas. Por quem dá e por quem recebe.
E viver dói tanto que um tapa na bunda passa batido. Respirar dói mais.
E é isso que o bebê deve contar pra mãe quando ela o recebe nos braços quentinhos, um corpinho frágil dizendo que algo dentro dele doeu, mas agora está tudo bem. Eles estão juntos.
E desde o primeiro dia foi assim, até hoje, chegando finalmente aos meus 28 anos, com pulmões saudáveis, minhas dores transitam por outras partes do corpo.
Ainda tenho vontade de gritar e sair correndo para os braços da minha mãe, mas evito.
Lido com tudo aqui, do meu jeito, mas lido.
Às vezes é a cabeça que dói, o trânsito de pensamentos aqui dentro é um pouco caótico. Sou noturna. Às vezes até meus sonhos me cansam. São conversas, conclusões, viagens, brigas, reencontros, tudo que meu subconsciente traz à tona quando o que eu mais queria era descansar.
E às vezes são as dores da alma, do coração, chame como quiser. Sinto e sinto tanto, que talvez esse sentir me faça lembrar vagamente a dor que nos aflige quando respiramos pela primeira vez.
E esse médico obstetra que eu não faço ideia de como se chama, foi tão importante para o meu nascimento, não mais do que minha mãe foi, é claro. Mas ele veio, fez o seu papel e sumiu.
E quantos já não sumiram da minha vida? E de quantas vidas eu também não sumi?
Calculei a importância de alguns amigos, ex algumas coisas, professores, chefes, colegas.
Foram importantes. Cumpriram seu papéis.
E sumiram.
Sumiram como o Allan que me jogou na calçada enquanto eu andava de patins aos 11 anos e um carro ia me atropelar.
– Te odeio, Allan! – eu gritei na hora.
Não tinha visto o carro vindo. Só o Allan viu.
É isso, talvez eu não tenha visto a importância de todos, talvez tenha me importado mais a dor de respirar. A dor de viver. E depois um abraço quente que sempre chega, e é só isso que eu quero agora. Um abraço quente.