Um dia de domingo, uma página de um diário

Exposição de Walter Firmo no IMS

Antes de sair de casa, passei glitter ao redor dos olhos. Vi uma moça usando glitter assim, gostei. Fiz também.

Saí.

O dia estava bonito, céu azul. Vi uma nuvem que parecia o desenho de um cérebro e depois vi uma outra que me pareceu o esqueleto de uma mão.

Não tive ninguém pra comentar isso, mas tenho certeza que se tivesse, a pessoa concordaria.

Peguei ônibus e metrô, o que eu até gosto porque me permite ouvir música sem interrupções.

Desci na Avenida Paulista e encontrei no meio do caminho meus amigos de música. Matheus usava uma camisa xadrez de cor azul, e parecia feliz, aquela felicidade que deixa a pele bonita. Matheus é bonito, e mais bonito ainda quando fala. Ganhei um abraço dele, e contei que comprei um ukulele. Ele me deu um mês pra aprender a tocar alguma coisa. Farei o possível. Ganhei um abraço.

Vi também o Chico. Hoje era dia do azul. Os olhos azuis do Chico estavam da cor do céu. Eles foram embora com os instrumentos musicais e eu fui em busca de um sorvete.

Tomei um sorvete de coco e chocolate enquanto caminhava pela Paulista. Tinha gente fazendo churrasco na calçada, achei engraçado.

Entrei no IMS e vi a exposição de fotografia do Walter Firmo, No Verbo do Silêncio A Síntese do Grito. Eu não sei, talvez seja o dia, ou a sensibilidade muitas vezes exagerada que eu tenho. Mas chorei vendo umas fotos, chorei porque achei lindas. Chorar de beleza, isso me acontece demais.

Choro de beleza. Se algo é lindo demais, me emociono, e me emociono através da água presente no meu corpo. Duas fotos eu senti com o coração, uma com dois meninos sorrindo, um deles com olhos brilhantes, olhos de criança. E outra de um senhor segurando um contrabaixo. A música, sempre há música.

Tirei fotos das fotos.

Fui para o cinema, e já sabia o que eu ia assistir, A Pior Pessoa do Mundo. Um filme norueguês que conta a história de uma mulher na casa dos 30 anos, vivendo nessa época extraordinária, a mesma época que eu, uma brasileira na casa dos 30 também estou vivendo.

Meu lugar na sala do cinema seria B6, mas a moça do caixa me deu a dica, “vá mais pra trás, a sala é pequena e a tela é inclinada”. Mudei para D6. E lá assisti o filme todo. Bonito, bonito.

A Pior Pessoa do Mundo é poesia, me deu a sensação de estar lendo um livro bom. Me deu uma vontade de encontrar esse livro pra não esquecer e reler sempre que possível. Mas era filme, vou ter que confiar na minha memória. Não vou entrar em detalhes, quero que você assista ao filme também.

Ainda mais se você for uma mulher na casa dos 30 como eu. Se for minha amiga, quero mais ainda.

Quando o filme acabou, eu chorei.

E chorei de beleza.

Chorei no caminho, ali na Paulista mesmo.

E limpei os olhos com os dedos, e quando olhei pra minha mão, meus dedos estavam brilhando por causa do glitter que passei ao redor dos olhos.

Fiquei pensando em tudo de bonito que vivi até agora, e das coisas lindas que vivi e vivo e que só terei consciência da beleza desses momentos daqui um tempo, porque ainda tem tempo, muita coisa ainda vai acontecer. E olha, foi muito estranho, mas eu senti de verdade que apesar de tudo, tá tudo bem sim.
E de algumas coisas eu já tenho certeza. Tive sorte, tenho sorte, por todos os acasos que a vida me deu, por todas as pessoas boas que encontrei e que me trouxeram mais amor, mais música, mais leveza, e até as não tão boas que me ensinaram de alguma forma a ter mais coragem.

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A nova moda

Ser doce é tão fora de moda. A gente não pode ser amável. A gente não pode nem amar. Legal agora é ser blasé. O segredo é desinteressar. É isso que agora é o novo amor. Chamam quem vai no caminho contrário de pessoa emocionada. O charme é parecer uma pessoa anestesiada. Tava aqui pensando se isso não é golpe da indústria farmacêutica. A gente compra mais Zoloft, olhos marejados nunca mais. E aí quando vê tá só a música do Arnaldo Antunes, "Socorro, não estou sentindo nada". Socorro, ninguém sente mais nada! Nem quando dizem um "eu sinto muito". Eu tô fora de moda, não sou blasé. 

Nenhuma solução

Minha amiga acha que o mundo está carente de afeto.
Uma outra amiga acha que só tem maluco no mundo, e isso inclui a gente, só que somos menos malucas (segundo ela).
No bar, uma menina disse que apesar de tudo, precisamos confiar nas pessoas. Uma outra concordou, mas disse que precisamos esperar o pior sempre. Uma outra ouviu tudo e disse que queria chorar.
A menina que estava sentada na minha frente disse que o segredo é dificultar, porque todo desafio é melhor. A que estava do meu lado falou que não, e contou que a terapeuta disse que “Se você vai sofrer, dificultar pra quê? Faça o que você quer fazer!”
Eu tomei meu drink.

Preste atenção

Tem uma crônica do Caio Fernando Abreu que eu gosto muito.
Essa crônica fala de borboletas, elas começam a sair da cabeça de um homem, e a medida em que ele vai enlouquecendo, as borboletas vão ficando mais escuras.

Acontece que eu sempre vejo borboletas. Normalmente, vejo borboletas amarelas. Lindas, lindas.
Mas reparei que pouca gente vê essas borboletas por aí. Parece que as pessoas estão sempre com tanta pressa que acabam não vendo nada de bonito pelo caminho.

Me questionei, será que as pessoas não estão vendo as borboletas, ou eu que tô ficando maluca como o homem da crônica?

E o que significa ver borboletas amarelas? Deve ser algo bom, porque sempre me sinto feliz quando as vejo por aí.

Acabei falando sobre isso com um amigo. Perguntei a ele se ele achava que era loucura.
– Por que só eu vejo essas borboletas? Você também vê?
– A gente só vê aquilo que presta atenção. Tem gente que vê números em tudo, você vê borboletas.

Medo da Queda

Você já esteve no alto de um prédio, e quando olhou pra baixo sentiu um medo de congelar a espinha?

As pessoas chamam isso de medo de altura.

Se fosse medo de altura você não teria subido, você não acha?

Acho que esse frio na espinha que a gente sente quando tá lá no alto, é o medo da queda.

E cair é isso, é perder o controle. É só a gravidade agindo, o tempo passando rápido, é não saber o que tem lá no final.

Carlos, se você estiver no topo de um prédio, recue. Depois de amanhã é domingo, você sabe.

Mas para todo o resto, talvez seja bom cair.

Frio na espinha e borboletas no estômago, saiba, são sintomas do medo da queda. Você já está caindo.

Só pensando

Tenho essa mania de engolir palavras.

Às vezes eu escrevo, e quando leio, percebo a falta delas. Uma pena. Nunca tem espaço para encaixá-las de volta. Puxo uma linha, uma seta, rabisco, apago, refaço. Escrever à caneta me dá essa liberdade de errar, de esquecer, de voltar e refazer.

O mais difícil é falar.

Às vezes engulo frases inteiras. Elas ficam ali rodopiando na minha cabeça, viram letreiros em neon por trás da minha íris e vão parar ali na minha garganta. Eu nunca sei o que fazer com elas.

Sempre na direção leste

Gosto da sensação do calor na pele.

O calor do sol num dia de inverno.

O calor da mão de quem a gente gosta na nossa mão.

Calor de carinho, cuidado e proteção.

Eu gosto do sol. Nos últimos tempos só tenho visto o sol se pôr.

Não lembro quando foi a última vez que vi o sol nascer.

Quase Carnaval

Na pele do rosto me sobraram pequenos brilhos coloridos, vestígios de uma vaidade, ou de um pouco de alegria, quem sabe.

A purpurina que cobria as pálpebras se espalhou pelo rosto, fazendo meu sorriso mais arteiro. E foi quando olhei para o seu rosto e vi que você também brilhava.

Brilhava da mesma cor, no mesmo tom. E com o mesmo sorriso arteiro você disse que parecia dia de Carnaval.

A Chica

A Chica, minha cachorra e minha amiga anda feliz, sorri com um sorriso de cachorro. É um pouco estabanada, charmosa, cheia de energia, mesmo sendo um pouco velhinha. Há 10 anos a gente se encontrou, e ela já era grande. Talvez tivesse 1 ou 2 anos de idade. Por isso acho que a Chica já tenha uns 12 anos, mas com um coração de filhote.

Dia desses, enquanto passeava com ela, uma mulher passou ao nosso lado e franziu a testa, se curvou e latiu pra Chica. Latiu exatamente como os cachorros fazem. Eu não entendi nada. Chica não deixou barato e latiu de volta, latiu com indignação. Seguimos o nosso caminho. Chica esticou um sorriso. Esqueceu a ofensa.

E eu que não falo cachorrês só queria que além do sorriso ela me soltasse ali umas palavras em português.

O que foi que a mulher te disse, Chica? Nunca vou saber.

Você está chegando ao seu destino

Uma vez me perdi no parque quando era criança. Fui procurar um bebedouro e me perdi.
Eu nunca fui boa em me localizar e em traçar trajetos.
O estranho é que por mais que estivesse perdida, não me senti perdida.
No final acabei reencontrando minha mãe e meu irmão, esse chorou um monte achando que nunca mais ia me ver.

Depois de adulta eu ainda me perco. O chato, o chato mesmo, é saber agora quando eu estou perdida.
Parece que aí é que não me encontro, se não soubesse, me achava.

Ano II da pandemia

Tenho bocejado tanto. Sinto que minha alma quer engolir o universo inteiro.
Respiro, mas não tem sido o suficiente.
Algo dentro de mim anseia por um pouco mais de vida.
Existem limitações, tanto minhas quanto do mundo.
Eu bocejo e meus olhos se enchem d’água.
É sempre a mesma coisa.
O tédio absoluto incomoda até meus pulmões.
O incenso queima no quarto e eu sinto o cheiro de lavanda pairando no ar.
Escuto o som da chuva caindo no quintal, descendo pela calha, tamborilando no telhado.
No meu quarto deixo apenas uma luz quente acesa. Todas as luzes de cores frias, aquelas com cara de hospital, me irritam os olhos e bagunçam meus instintos.
Aqui dentro, rodeada por livros, cadernos, canetas, discos, fotografias e tudo que me é familiar, me sinto segura, acolhida, confortável, guardada, como uma fruta na gaveta.
Antes que eu soubesse, meus pulmões já sabiam, começo a bocejar.

Até mais, Gavião Carijó

Abri a janela do quarto e dei de cara com um gavião pousado no telhado do vizinho.
Ele me olhou com olhos sérios, aquele olhar dos gaviões.
Era cedo, seis hora da manhã.
Apesar do meu costumeiro mau humor matinal, fiquei feliz.
Diferente dos olhos sérios do gavião, devo ter sido transparente demais, e acabei confessando prematuramente a minha admiração.
– Você é lindo!
No mesmo instante, a ave voou e sumiu no horizonte.
Eu fiquei no mesmo lugar.

Conselhos inúteis

Me lembro de quando eu era criança, sentada no tapete da sala, brincando com peças de lego.
Imaginava que o futuro era um lugar muito distante.
Eu fazia contas, “em ano x eu vou ter tantos anos, e tudo vai ser diferente”.
Me imaginava em fases da vida, eu aos 15 numa festa bonita, aos 18 dominando o mundo, e já velhinha, eu aos 30.
Ainda me vejo sentada no chão da sala sobre o tapete escuro. Eu era uma criança, e criança não tem noção de tempo.
O fato é que a gente cresce, e enquanto a gente pensa sobre o tempo, ele vai passando, apressado, fugido.
Eu já não sento mais naquele tapete da sala, nem brinco com lego, não sou quem eu imaginei que seria quando chegasse na minha idade. O tapete não existe mais e aquela casa não é mais minha.
Dessa pressa, o que me sobrou foi um pouco de saudade, e a certeza de que tudo sempre passa, e que o tempo é sempre diferente do que a gente espera.

Para Mais Um Ano Que Acaba

O ritual de encerramento de ano é importante pra mim, mesmo que nada mude efetivamente do dia 31 para o dia 1. Mas sinto que fechei alguma coisa, ou pelo menos sinto que deixei pra trás. E deixar pra trás é importante para seguir em frente.

Nos últimos tempos eu desaprendi um monte de coisa, e pelo menos pra mim, agora as coisas têm sabor de recomeço.

Na minha retrospectiva do Spotify apareceu que meu perfil era Saudoso. E acho que não só pra música, esse ano de 2021 foi um ano cheio de saudade. Senti saudade de tanta gente, de tantos momentos. E foi até pela saudade que também fiz as pazes. Fiz as pazes comigo e com gente que eu gostei muito. Fiz isso porque entendi que era uma escolha. Tudo muda sem a gente ter controle de nada. A gente não tem controle de nada.

Uma vez eu li um post de uma menina contando que depois de muito tempo lidando com depressão, ela estava se sentindo melhor, e justamente nesse momento a amiga que dividia o apartamento com ela falou: Você está feliz, né? Há quanto tempo eu não te via ouvindo música?
E foi quando ela percebeu que por um tempão ela viveu imersa num silêncio, num sem música.

Acho que 2021 foi um ano de muitos silêncios.

Escolhi essa foto porque ilustra uma espera que eu mantive dentro de mim, e acho que foi uma sensação que muitos tiveram também. Ao mesmo tempo existia uma esperança. Algo bom vai acontecer, precisa acontecer. E coisas boas aconteceram.

Se existe algo de bom pra tirar disso tudo, talvez seja a lembrança que melhor que ter música tocando, é ter alguém pra ouvir também, é poder dançar, é poder cantar junto.
E a todos que trouxeram música pra minha vida, eu deixo meu abraço apertado, é muito bom abraçar.

E a todos que levam música para o mundo, vocês fazem mágica. Obrigada por tornar o mundo um lugar mais leve.

Não dá pra saber o que vem por aí, mas enquanto existir música aqui dentro, sempre vai ter um coração pronto pra tocar.

Que eu tenha força pra continuar a longa caminhada, que você tenha força também 🙂

Cacofonia

O som da geladeira me incomoda. É um zumbido esquisito, e às vezes ela faz um estalos que escuto aqui do meu quarto.
Tem hora que eu escuto móveis sendo arrastados. Sei que é meu vizinho, isso não me incomoda. Mas acho engraçado, porque sempre que escuto esse barulho, acabo imaginando um velho arrastando uma cadeira. Vejo meu vizinho.
Quando chega a noite, também escuto os sons quem vêm da rua.
Tem gato miando, cachorro latindo, tem vidro quebrando, tem viatura e bandido fugindo – é o que eu acho.
Já escutei mulher gritando, bebê chorando e sempre tem gente cantando “Parabéns Pra Você”.
Tem barulho de fogos, às vezes nem sei o porquê.
Tem som de portão fechando, e em algum lugar tem música tocando.
Dependendo do dia, dá pra saber que tem culto na igreja.
Sempre tem alguém que pede pizza, o motoboy gosta de gritar. Tem gente que demora pra atender. Escuto a impaciência de longe, dá pra saber pelo acento agudo no último A quando ele grita pizza pela terceira vez.
É raro, é bem raro, mas às vezes eu escuto apenas o som da geladeira estalando e zumbindo.

Turma A – Manhã

É bom ter um amigo de infância, alguém pra quem você olha e ainda vê uma criança. Ao ver a criança no outro, acho que consigo ver também a criança em mim.
Tenho um amigo assim.
De tempos em tempos a gente se fala.
Esses dias ele me perguntou se eu tenho saudades daquela época.
Pensei, procurei em todos os cantos algum vest´´ígio de saudade dentro de mim.
Não achei.
Ele me disse que tem saudade de algumas pessoas.
Isso eu não falei pra ele, mas deveria ter dito: Eu sei que não tenho saudades, porque pra mim saudade é revisitar na memória um tempo e espaço, é tentar reviver os caminhos, ouvir de novo uma voz…
De lá, me restou pouca coisa pra querer viver de novo.
Talvez, considerando meus motivos pra não ter saudade, a melhor coisa que eu posso ter tido foi sorte em ter conhecido pessoas como ele.
Não tenho saudade, mas tenho sorte.

Ela Comeu A Maçã Envenenada

Duas mulheres em uma exposição (2021)

Duas mulheres vendo uma exposição.

Eu vou usar essa foto que eu fiz para falar algo que está me incomodando um pouco nesse domingo cinza e chuvoso, em plena primavera.

Penso nas festas que eu já fui. Era sempre assim, festas de amigos com amigos de amigos e amigos desses amigos. Pessoas estranhas. Somos todos estranhos no final das contas.
Aquela velha frase – De perto ninguém é normal – é sempre uma frase boa de lembrar.

Pessoas estranhas no sentindo completo. Não te conheço, e te conhecendo, você continua sendo estranho.

E hoje um estranho levantou uma questão que me deixou intrigada:
– Como uma mulher, em pleno 2021 pode aceitar a bebida de um estranho?

Fico triste porque percebo que na mente de algumas pessoas, a mulher é um ser um tanto ingênuo, até com déficit de intelecto e senso crítico.
Quase uma tolinha, como Branca de Neve, que aceita de bom grado uma maçã envenenada de uma pessoa que claramente é uma bruxa. Mas só faltava o letreiro em neon com os dizeres: BRUXA. Mesmo assim, ela dá uma bela mordida, mastiga e engole o pedaço de maçã envenenada. Os olhos brilham de satisfação, ela desmaia. Desmaia porque é burra e ingênua e a outra é bruxa e esperta.

É isso que muitas pessoas pensam de uma mulher. E deve ser muito cansativo para o príncipe encantado, que tanto trabalha e gasta o cérebro com raciocínio lógico, pensar que além de tudo, precisa salvar a Branca de Neve. Imagina isso no ano de 2021. Coitado.

Essas mulheres que todos os dias entram em Uber com um estranho. Que pedem um Ifood que é um estranho que entrega depois de buzinar ou gritar o nome dela no portão de casa. Que dão match no Tinder com um estranho que parece legal e interessante. Que trocam olhares com um estranho até bonito. São tantos estranhos na vida de uma mulher, desde profissionais da saúde até o porteiro. São tantos estranhos, até o mais próximo, o mais amado, um dia pode parecer um estranho.

Como esse estranho aí na tela que pode me ler.

A gente esquece e eles esquecem, que no final das contas, ninguém se conhece de verdade. E talvez o problema não esteja nessas mulheres de 2021. Mas eles não me ouvem, eu também sou uma estranha.

Minha Flor, Meu Bebê

Já ouviu essa música do Cazuza? Que coisa clichê citar Cazuza, mas acho blasé essa gente que tem medo de citá-lo.

Nessa letra ele diz

Dizem que eu tô louco
Por te querer assim
Por pedir tão pouco
E me dar por feliz
Em perder noites de sono
Só pra te ver dormir
E me fingir de burro
Pra você sobressair
Dizem que eu tô louco
Que você manda em mim
Mas não me convencem, não
Que seja tão ruim

De uns tempos pra cá, me sinto meio Alice, abrindo uma porta atrás da outra, é tanta coisa que aprendo que às vezes me sinto grande demais, daqui a pouco vejo que tô miúda de novo.

Faz pouco tempo, fiz o curso da Maria Homem, O Feminino e o Trágico. Aprendi que o lugar da mulher, por muito tempo, foi o lugar de submissão, de silêncio. Ao logo da História, as mulheres foram conquistando espaços, mas essas conquistas sempre estavam ligadas ao trágico.
A mulher que abandonava o silêncio, que questionava, era chamada de bruxa, era rejeitada, queimada, morta.
Horrível, né? O fim era sempre a loucura ou a morte.

Pensando nessas opções, melhor ficar quietinha. Algumas não ficaram, talvez por isso eu esteja escrevendo livremente hoje.

Compartilhando um pouco do que aprendi, conheci a história da escultora Camille Claudel, que foi internada num hospício por 30 anos, onde morreu em 1943. O parceiro de trabalho e amante dela, você deve conhecer, o famoso Auguste Rodin.
Que fim triste o de Camille. Talentosa, sensível, criativa. Enclausurada, abandonada, sentenciada como louca. Camille terminou sua vida sozinha, sem reconhecimento algum. Todo o reconhecimento como artista veio muitos anos depois de sua morte. Um filme lindo que conta a história dela, e que partiu meu coração, é Camille Claudel 1915.

Ruth Bader Ginsburg

Recentemente vi outro filme, inspirado na vida da juíza Ruth Bader Ginsburg.
Não conhecia a história dela.
Achei interessante, ela entrou em Harvard em 1956, a escola começou a aceitar mulheres apenas a partir de 1950.
Harvard foi fundada em 1636.
Na turma dela havia 500 homens para 9 mulheres.
Desde sua formação até o final da vida em 2020, ela lutou pelo direito das mulheres. E era o membro mais antigo da Suprema Corte americana.
O filme que vi se chama Suprema, é de 2018.

Desde então, tenho lido muito sobre o universo feminino, faz parte do meu processo de autoconhecimento. Tenho percebido que muito do que vivi e vivo até hoje, é uma experiência parecida com a experiência de mulheres do mundo todo. Existem lugares culturalmente mais opressores, sem dúvida, mas de alguma forma todas nós temos um elo que nos une, todas nós precisamos nos reafirmar como seres humanos constantemente.

Não gosto do papel de vítima, mas é importante deixar claro que também não quero me tornar uma vítima. As mulheres vivem com esse medo constantemente, é um mecanismo de defesa que não garante nada, e é um estado de alerta que não evita nada. Me pergunto se os homens, os bons homens, estão conscientes dessa realidade.

Na escola ouvi muito a frase “Seu corpo é um templo”, como se fosse uma obrigação particular de cuidado, e é, concordo. Mas vivemos em sociedade, o mundo é coletivo. Pensando assim, também deveria ser ensinado aos homens que o corpo do outro, o corpo da mulher, também é um templo. Por ser um templo, respeite. Não agrida, não viole, nao subjugue. Escrevo isso sentindo um pouco de cansaço.

E não se trata apenas do corpo físico sendo violado e invalidado. Existe a mente, as ideias, os sonhos, os desejos de uma mulher que todos os dias são apagados, silenciados, subjugados. É também por isso que tenho lido tanto sobre o assunto. Me sinto menos sozinha, me sinto fortalecida.

Talvez eu tenha me perdido em ideias, e deixado pontas soltas, mas talvez alguém leia esse texto desabafo e se sinta menos sozinha.

Uma vez eu ouvi que deveria deixar pra trás tudo que eu já sofri. E pra deixar pra trás, é preciso mudar, não é? Tenho feito isso. E acho que pra mudar, é preciso abrir a mente. É necessário ouvir mais, e estar de coração aberto.

Por isso comecei com a música do Cazuza, Minha Flor, Meu Bebê. Eu gosto até do nome. Coisa carinhosa, sabe?
Pra mim, o amor é uma energia transformadora.
Os seres humanos são capazes de criar coisas maravilhosas, pense em Camille Claudel, Tarsila do Amaral, Jane Austen, Clarice Lispector, pra citar apenas algumas.
Seres humanos são capazes de mudar o mundo, como a juíza Ruth Bader Ginsburg, Maria da Penha, Angela Davis, Rosa Luxemburgo, entre tantas outras.

Mesmo assim, com tantas mulheres fazendo história, me pergunto o que faz com que alguns homens ainda se recusem a nos ouvir. E sempre que me deparo com um homem assim, visualizo um bebê, completamente indefeso, no colo de uma mulher que o amamenta.
Minha flor, meu bebê. Mas ele se esqueceu disso. Pobres dos homens que esquecem.

Vídeo: O Feminino e o Trágico
Livro: Os Homens Explicam Tudo Pra Mim
Coluna: Violência contra a mulher impacta saúde física e mental para a vida toda