As bruxas

Hoje eu aprendi uma coisa nova.
Akelarre é uma expressão que tem como um dos seus significados, reunião de bruxas.
Aprendi por causa de um filme que leva o mesmo nome. Em português se chama Silenciadas.
Todo mundo sabe das histórias sobre bruxas que foram queimadas.
E também aprendi uma outra coisa. Em 1518, na França, teve uma epidemia de dança que começou com uma mulher. O nome dela era Frau Troffea. Essa história terminou em tragédia. A Florence lançou um álbum chamado Dance Fever em alusão a esse fato.

Faz pouco tempo, li uma entrevista de Jorge Drexler, cantor uruguaio por quem sou apaixonada. Ele falou sobre os anos de ditadura no Uruguai, e como a ditadura também age no corpo. As pessoas não se permitem dançar. São duros, duros como o próprio regime ao qual foram submetidos. Nesse filme que eu vi, um dos personagens tem uma fala perturbadora “não há nada mais perigoso do que uma mulher dançando”.

A liberdade é uma ilusão, eu acho que isso é verdade. E eu penso em quantas vezes até com a ilusão não nos permitam sonhar. Dançar, cantar, falar, sonhar, imaginar. Coisas que as bruxas fazem.

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Com quantos anos os pés param de crescer?

Com quantos anos os pés param de crescer?

Aconteceu uma coisa estranha comigo. Antes da pandemia meu número de calçado era 35, depois da pandemia só me servem calçados 36.

Até pensei que talvez tenham sido as fábricas de sapato, num grande acordo com o supremo, com tudo… Mas acho que não. De alguma forma meus pés cresceram um pouco, talvez de tanto andarem descalços e livres, sentido o chão frio aqui de casa. Meus cabelos também cresceram, mas isso já é coisa habitual dos cabelos, me perdoem os carecas.

O que mais será que mudou?

Se mudou fora, onde se vê, como pode ter sido aqui dentro?

Pensamento é terra que ninguém anda, apenas o próprio viajante. Fico aqui pensando, viajando, aproveito que ninguém vê. Eu acho que mudei, agora eu calço 36.

Seu cavaquinho

Tirei uma foto do cavaquinho, assim, bem de perto.
Não sei tocar nenhum instrumento, não sei cantar.
Mas agora tenho um ukulele, um cavaquinho e um violão.
Por muito tempo disse que nunca tinha perdido ninguém próximo, e que não sabia como era isso.
Recentemente minha vó foi embora, e é muito estranho… Ainda não sei dar nome pra isso. O que é estar de luto? É uma dor ramificada, porque outras pessoas perderam a mesma pessoa, alguns perderam uma mãe, uma esposa, uma amiga, e até o gatos perderam quem cuidava deles. Como meu vô disse “Depois de mais de sessenta anos juntos, como a pessoa deixa de existir assim?”.

Preciso ser forte porque também preciso ser apoio, e receber apoio, e dar apoio de volta. A vida segue o caminho que deve seguir.
E vai embora também uma parte da história dela, da minha própria história. De coisas que ela lembrava e eu não, de momentos que ela viu, e eu não vi.
E eu fico aqui com tantas perguntas. Minha vó foi embora e me fez lembrar da minha infância. Me fez lembrar do quintal dela, da casa antiga que não existe mais, das plantas, dos gatos que ela sempre teve, do meu vô sendo o ponto de equilíbrio. Acho que a gente pode amar muito, e não saber como. Acho que a gente pode sentir demais, e não saber lidar. Acho que a gente pode fazer um milhão de perguntas e acabar assim, sem resposta. A vida continua, de todo jeito e toda forma. E aí eu olho pro cavaquinho que ela não sabia tocar, e que eu também não sei tocar, e penso que talvez a gente pode fazer só isso, apenas amar. Mesmo sem saber. Que a gente pode só sentir, e sentir, e mesmo assim, sem saber como e porquê.

Adeus 2022

Eu não tenho o costume de escrever promessas para o ano que vem. Imagine, eu esqueço senhas, logins, esqueço onde coloquei as chaves. Na última vez esqueci um casaco na chapelaria. Como vou lembrar o que prometi que faria num ano que ainda vai chegar? Não faço isso comigo. Eu gosto de mim, sei que as coisas mudam, sei que o mundo pega a gente de calças curtas (amo essa expressão).

Mas uma coisa que eu gosto de fazer, é um balanço do que passou. Pra lembrar o que foi bom, pra organizar as ideias, saber o que fiz nos 365 dias passados (ou um pouco menos, pois costumo escrever antes do ano encerrar de vez).

Estou com a mão doendo de tanto que escrevi. Que ano confuso, esquisito, que caminho sinuoso. Pra mim foi assim. Que cansaço, que cansaço, que cansaço.

Achei que esse ano foi bastante solitário, justamente o ano da volta das aglomerações. Não é uma reclamação. Eu gosto até. Mas engraçado que escrevendo sobre esse ano, percebi que eu não tava sozinha. Tudo de bom que me aconteceu nesse ano, foi justamente por conta de outras pessoas. Outras pessoas estavam comigo, amigos.

Eu faço esse trocadilho safado: terapia é bom, mas ter amigos é melhor ainda.

E por isso é bom escrever. Pra ver a vida como um quadro em exposição. Pra descobrir detalhes, pra abrir o coração.

A última parte das folhas que escrevi. Nem sei tem alguma serventia, mas vou deixar aqui.

Minha letra está ficando cada vez menor, e minha visão cada vez pior.

Rejeite os comandos

Não ande assim
Não coma muito
Solte esse cabelo
Prenda esse cabelo
Não corte o cabelo
Corte esse cabelo
Não dance assim
Não dance
Não ganhe peso
Não saia sozinha
Não tenha muita opinião

Não opine
Não peça
Não reclame
Não exija
Não fale muito
Não fale
Chore baixo
Chore escondida
Seja forte
Seja frágil

Não sonhe
Não deseje
Não agarre
Não goze
Não ria
Não gargalhe
Não sinta
Finja
Seja discreta
Seja elegante

Seja invisível

Não brinque
Não leve a sério
Se perca
Não use um mapa
Não pense
Seja salva

Era assim desde o tempo da cordinha

Existem sensações que só aqueles que precisam, irão sentir.
Os que precisam de ônibus.
O tempo é relativo.
Esperar por 15, 20, 30 minutos pelo ônibus pode ser uma eternidade.
Às vezes você não tá a fim de papo, e é nessa hora que aparece alguém que quer muito conversar.
Os opostos se atraindo.
Acontece sempre comigo.

Certa vez, estava no ponto de ônibus com uma senhora.
Nós duas estávamos caladas.
Eu esperando o silêncio e ela esperando uma brecha, uma única brecha.
Brecha que eu dei, acidentalmente, pois carrego uma mania de infância, eu penso alto. Eu falo sozinha.
Do outro lado da rua vi um cachorro viralata que mancava. Aquilo partiu meu coração. Ele estava machucado.
Meu cérebro precisou vocalizar, soltei para o universo:
– Meu Deus, que dó!
Rapidamente a senhorinha se manifestou.
– Pois é minha filha, é muito difícil.
– Sim, da muita dó. E eu fico sem saber o que fazer.
– Olha, só Deus sabe meu esforço. Essa dor nas costas que eu tenho acaba comigo.
Eu fiquei sem reação. Foi isso, acho que ela nem viu o cachorro.
E eu tive que me compadecer de uma dor nas costas que eu nem sabia que existia.

Oportunidade.
Essas pessoas ficam no ponto de ônibus esperando uma oportunidade de diálogo.
É sempre de manhã.
Um homem apareceu do nada, segurando uma pasta por baixo do braço, agitado, emputecido. Ele tinha aqueles olhos que estão malucos por identificar qualquer vacilo seu para perguntar que horas são e ficar ali emendando um assunto no outro até que um ônibus te salve.


Eu vacilei. Não sei em que momento, mas vacilei.
Mandaram ele aplicar uma avaliação numa escola lá da rua, chegando lá, era a escola errada.
Ele ligou na secretaria e falou pra mulher conferir.
A mulher conferiu, era a escola errada mesmo.
Ele perguntou: E então, e aí? O que eu faço agora? Vou embora? Pode ir embora. E meu dia? Dia perdido, o que eu faço? É bom remarcar mesmo. Eu tô indo pra casa! – O homem parecia uma metralhadora. – Menina você tá sabendo que vai ter jogo? Argentina (Aqui ele falou num tom como se conversasse com uma criança).
Não tô sabendo não. – Como NÃO? Copa do Mundo, menina! Você sabe que tá tendo Copa do Mundo? –
Isso eu sei, só não sei qual jogo vai ter. – Tem que saber, tem que saber!
Copa do Mundo, ele disse resmungando.
Eu senti que ele me achou uma completa imbecil.
Por mim, tudo bem.

Hoje minha pressa era de ir pra casa.
O ônibus chegou. Entramos. Tranquilamente. O ônibus fechou as portas, deu partida. Em seguida freou bruscamente, abriu as portas, um homem esbaforido entrou, gritou um obrigado para o motorista, ele tinha no rosto o sorriso dos campeões.
Essa é uma sensação, que diferente das que eu contei ali em cima, é uma sensação de vitória, de cruzar uma linha de chegada e encontrar quem bate na sua mão, comemora, te dá uma garrafa de água, te presenteia com uma medalha… o motorista que parou pra você entrar quando ele simplesmente poderia ter ido embora.
Só quem anda de ônibus sabe.
E eu tô sabendo, sexta vai ter Brasil e Croácia. É Copa do Mundo!

Perdi o ônibus, ainda bem

Numa noite depois do trabalho, só queria ir pra casa.
Fui apressada para o ponto de ônibus, farol aberto para os carros, farol fechado pra mim.
Observei o ônibus que eu deveria pegar indo embora.
E quando o ônibus passou, vi que do outro lado da rua, esperando o farol fechar, estava Nando Reis.
Farol fechado pra ele também.
Eu amo Nando Reis.
Quem não ama Nando Reis?
Tenho certeza que ele deve ter uma coleção de caderninhos em casa cheios de música e poesia, listas de compras, pensamentos soltos, rabiscos, letras completas e inacabadas, talvez até desenhos.
Naquela noite eu fiquei feliz pelo atraso, pela inconveniência do trânsito, pela partida de um ônibus que me deixaria em casa meia hora mais cedo.
Nando Reis atravessou a rua, não existe ninguém com ele. Ele é ele só, e só ele é Nando Reis. Com aquela barba ruiva, os cabelos em caracóis também ruivos, os óculos com lentes transparentes, dois fãs um par.
E eu vi que era Nando Reis , meus olhos vibraram.
Com uma ousadia que às vezes me falta, disse:
– Nando, eu posso te dar um abraço? – Ele olhou pra mim com um sorriso que eu nunca vou esquecer.
– Claro!
E eu dei o abraço, e quando você dá um abraço, você também ganha ele de volta. Eu ganhei um abraço de Nando Reis. Já com o coração pulsando de alegria, além de toda vida que corria no meu corpo, pude dizer com uma verdade que não poderia ser contida – Nando, eu te amo!
E nessa hora ele soltou uma risada bonita, divertida. Eu também estava sorrindo.

Fui esperar o próximo ônibus, e acho que essa é a única vez que me lembro tão bem de um ônibus que perdi.

Juntinho

Sensação estranha essa de morar num corpo
Você não acha?
É como se a alma vestisse uma roupa e andasse por aí
A gente é o que é por dentro
Por fora a gente vai passando
Com essa roupa que veste os pensamentos
Todos passageiros
Assim como você
Assim como eu
Mas a gente esquece, não esquece?
A gente esquece que nada permanece, tudo perece
E a gente anda por aí
Com o coração a mil, jurando que talvez
Jurando que nunca mais
E de repente a gente se dá conta
Que jurou e mentiu
Porque tá tudo ali de novo
Essas coisas que o coração sente
Que a cabeça pensa
Que a alma sublima
Essas coisas que o corpo esconde, mas que a gente sabe
Eu acho que é mágica
Pode ser química
Mas é mais bonito chamar de mágica
Essa coisa que brilha no olhar de gente bonita
Que quando se olha assim
Uma no olho da outra
Sem querer
Num tropeço do destino
Num descuido de quem busca sem saber buscar
Numa fração de segundos
Sente o coração parar
E aí lembra rapidinho
Que a gente é muito mais
E a gente fica bem melhor quando tá juntinho

Éramos crianças em 1998

O ano era 1998, a casa da família brasileira costumava abrigar uma televisão de tubo.
Não existia fake news, mas existia mentirada mesmo, que era contada boca a boca ou através de revistas de fofoca.
As crianças brincavam de bola na rua, andavam de bicicleta, pulavam amarelinha, compravam cigarros para os seus pais, tios e tias, e às vezes ganhavam as moedas que vinham de troco. Às vezes não ganhavam nada, cumpriam apenas o dever de criança compradora de cigarros – moço, minha tia pediu um free em maço azul – e um adulto de bigode olhava pra baixo e vendia o cigarro sem cerimônia.
Ainda lembro das notas de 1 real enroladinhas.
Os videogames já existiam, mas a gente só via na casa dos primos ricos. Tinha desenho na TV, e a gente via de um tudo. Era Banheira do Gugu, Teste de DNA no Programa do Ratinho, no SBT passava OZ de madrugada, de manhã tinha a Eliana cantando sobre dedinhos e ficava tudo bem. Que loucura esses tempos.
Foi no ano de 1998 que tivemos a Copa do Mundo. O Brasil perdeu, mas a gente se divertiu muito até chegar lá. Tinha jogador com nome de anão da Branca de Neve, tinha o Cafu que era do Jardim Irene, tinha o grande goleiro Taffarel, que no nome já era a própria muralha – ainda posso ouvir Galvão Bueno gritando “sai que é sua Taffarel”- , e tinha o melhor de todos, Zagallo.
Também me lembro que nesse ano o horário eleitoral nos apresentava umas figuras caricatas, e que muitas vezes ludibriavam crianças como meu irmão.
O grito que eu ouvia lá da cozinha, quase como um chamado pra guerra, vinha da TV de tubo:

– MEU NOME É ENÉAS!

O mesmo discurso que me dava um certo medo, fazia meu irmão, três anos mais novo, correr pra sala e gritar junto com o barbudo da direita “MEU NOME É ENÉAS”.
Eles pareciam um só. Uma fenda no tempo separava o velho do menino.
Existia um ar cômico, ninguém levava aquilo a sério, acho que até eu dava risada. Era uma criança imitando um político. Que criança entende de política? Veja no que deu Carlos Pilotto. Ele precisa urgente brincar de tazo. Do que brincam as crianças hoje em dia? Salvem Carlos Pilotto.
E como de costume, a eleição era um evento em muitos lares, assim era no meu.
A gente acompanhava os adultos eleitores, e até apertava os números na urna quando eles davam a permissão.
Era muito divertido.
No dia da votação, minha mãe levou meu irmão, que na época tinha 4 ou 5 anos. E ele foi muito animado.
Ao colocar os números na urna, apareceu outra foto que não era a mesma da imagem que ele estava acostumado a apreciar na velha televisão de tubo, mesmo assim, era a foto certa e minha mãe confirmou, TRILILI.
Isso fez meu irmão sair aos prantos, praticamente carregado pela mãe traidora da pátria do pequeno coração conservador dele. Soluçando enquanto as lágrimas escorriam em seu rosto de menino, ele berrava no meio do colégio “Eu quero Enéas, eu quero Enéas”.
Os sinais estavam todos lá.
Enéas não foi eleito naquele ano. Ele queria ser presidente.
Mais de 20 anos depois, somos nós os adultos. Eu fui pra esquerda, ele foi mais pra direita.
Lembro de Arnaldo Antunes cantando “saiba, todo mundo foi neném”.
Em 2018 quem chorou fui eu. Em 2022, vamos ver…
Domingo tá logo ali, companheiro.

Ponto zero

Acho que todo mundo tem um momento de chegar ao nada.
O nada é o ponto zero de tudo.
Esse instante que parece uma eternidade, te faz ver tudo que poderia ter sido como se fosse um filme.
Uma força sombria pode sussurrar que é tarde demais, e isso enfraquece os ossos, embaça a visão.
Esse momento do nada deixa a gente preso numa realidade paralela.
Mas existe um depois além do nada.
Há um futuro, uma nova possibilidade.
Não esqueço das palavras de um amigo, e até posso ouvir a voz dele me dizendo:
– No máximo que pode acontecer, é eu voltar começar do zero. E por mim, tudo bem.

Dias de escuridão

De vez em quando olho lá fora não vejo nada.
Não há nada além da janela, além da porta. Não há nada sob o céu, nem caminhos novos, nem paisagens, nem pessoas com quem conversar.
Em dias assim, sinto que tudo é ilusão, até o tempo e o espaço. O futuro é apenas uma promessa, e não existem promessas concretas.
Posso fechar os olhos e dizer que rezo, ou posso apenas dormir.
A Terra continuará girando em torno dela mesma e em torno do Sol.
A noite vem com escuridão, e a luz vem com o amanhecer.
Fecho os olhos, deixo a noite chegar.
Ainda existirá luz, e quando ela voltar, abrirei a janela, atravessarei a porta, encontrarei pessoas lá fora, porque tudo muda, eu mudo também.

De gostar

Gosto de ler Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Caio Fernando Abreu.
Gosto de ouvir Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Chico Buarque.
Também gosto do silêncio, de observar o céu e de momentos de nada.
Amo suco de laranja geladinho, melancia com gengibre e suco de tangerina.
Adoro frutos doces, manga, atemoia e uva.
Eu sonho muito e lembro dos meus sonhos na maior parte das vezes.
Gosto muito da minha solidão, mas também gosto de ficar junto.
Gosto de ir ao cinema, ver os trailers, e só sair depois dos créditos.

Latina e Revolucionária

Obra de Adriana Varejão

Tenho um quadro na minha parede que diz: Soy Latina Americana, Soy Revolucionária.
Fiquei encarando esse quadro, me senti uma farsa.
Que tipo de revolução tenho feito?
Eu queria mudar o mundo, que pretensão.
O mundo é como uma boneca russa, não é apenas um.
Um mundo dentro de um mundo, dentro de outro mundo, e dentro dele outro mundo, e segue assim infinitamente.

Eu visto uma bandeira, levanto a mão, mostro que tenho um punho. Ando de queixo erguido, visto a armadura das pessoas corajosas. No meu peito ainda sinto medo, mas eles não precisam saber.
Meu coração pulsa e me dá o ritmo de uma música. Penso na canção de Jorge Drexler, e repito mentalmente “Amar es cosa de valientes”.

O que é ser valente?
Nesse momento, é subir essa rua antiga, passar pelas calçadas, ouvir o barulho do tráfego, seguir em frente. Sentir o calor do sol, ignorar o suor que escorre pelas costas assim como qualquer olhar hostil. Hoje, ser valente é seguir em frente, apesar de tudo.
No meu bolso tenho um papel com números anotados, números que até decorei.

Não sou uma pessoa de armas. Eu luto usando minha alma, mente e coração.
Já não sou quem eu era antes, estou em transformação.
Eu sou um mundo dentro de um mundo, dentro de outro mundo, e dentro dele outro mundo, e assim sigo infinitamente.
Queria ter o tempo na mão, queria ter a resposta certa para toda pergunta.
Por enquanto, sei que sou latino-americana, sou valente, meu coração pulsa e preciso seguir em frente.
Eu sou minha própria revolução.

Nostalgia

Ninguém vive de nostalgia, eu sei. É que eu me pego pensando, principalmente em dias como esse, nos sons e nas cores, no que foi dito e no que poderia ter sido. É uma construção de um mundo paralelo, uma outra realidade que não existe, e se não existe, é apenas imaginação, armadilha da nostalgia. Que pena, ou que bom que tenha sido assim, a gente nunca sabe. E vivemos no se fosse como se a outra rota fosse a da salvação. Na minha imaginação é. Foi assim, não foi de outro jeito. E eu já nem sem dizer se o nome disso é vontade ou se posso chamar de saudade. Vou em frente, ainda levo meu meu coração.

Dor do crescimento

Parece que a vida dói devagarinho na gente
Você não acha?
Tudo é despedida, mesmo quando é chegada
Nasci e me despedi do corpo da minha mãe, tive saudade do cheiro
Todo bebê tem saudade do cheiro da mãe
Será que essa é a primeira saudade de toda pessoa que nasce?
Eu tenho saudade de ver as casas grandes, com móveis grandes, e quintais enormes Quando a gente é criança, tudo é muito grande, mesmo que não seja de verdade
Aí a gente cresce e o mundo vai ficando cada vez menor
Vai apertando a gente pelos cantos, no trânsito, no metrô, nos shows e nas filas dos banheiros
E tem hora que tudo que a gente quer é um abraço pra soltar
Pra soltar do medo, pra soltar do sufoco, pra soltar da gente e de repente sentir que a gente está no outro
É que a vida vai doendo assim devagarinho
Minha mãe dizia que eu reclamava muito quando era pequena, e ela diz que o nome daquilo era dor do crescimento
Eu acho que a gente nunca para de crescer

Essas Mulheres

Gosto de ler histórias sobre outras pessoas, principalmente sobre mulheres. Sinto que ao aprender sobre a vida delas, acabo aprendendo mais sobre mim.
Sem exceção, todas as histórias que li mostravam um desejo profundo pela liberdade, pela expressão, pela criatividade, pela autenticidade, e um amor profundo, todas tinham muito amor no coração. Camille Claudel, Yoko Ono, Marilyn Monroe, Clarice Lispector, Marília Gabriela, Etta James, Nina Simone, minha mãe… são tantas.
E ao mesmo tempo, todas essas mulheres viveram e vivem uma grande solidão.
O que acontece quando uma mulher salta as barreiras, quando ela desata os nós, por que a solidão fica tão evidente?

Quando eu tinha uns 5 anos, ganhei uma bicicleta. Era uma bicicleta Ceci da Caloi, era rosa e branca, e tinha uma cestinha. E como toda bicicleta de criança, ela veio com rodinhas. Minha rua era de paralelepípedo, então, toda vez que eu ia andar de bicicleta, sentia um desconforto com a bicicleta trepidando toda, aquelas rodinhas entortando, tornando minha experiência um tanto desagradável.
Mas as rodinhas me impediam de cair, foi o que minha mãe falou. Se você tirar as rodinhas você vai cair, você tem certeza? Eu tenho. Pode tirar.
Alguém tirou as rodinhas pra mim, pode ter sido meu pai, mas isso não importa.
O que importa é que aprendi na marra a encontrar o equilíbrio em cima daquela bicicleta, isso porque eu queria um caminho mais solto, mais livre, menos barulhento.

E eu caí. Aprendi que o paralelepípedo não é o melhor amigo dos joelhos e mãos de meninas. Tenho ainda algumas cicatrizes dessas quedas, bem pequenas, pequenas porque meu corpo também era pequeno. E eu cresci, eu ainda ando de bicicleta, eu vou por aí.
Talvez de alguma forma, a vida de uma mulher seja um pouco isso, aprender a andar de bicicleta, e em algum momento escolher, escolher quando é preciso ir mais longe, vai chegar o momento de tirar as rodinhas. E quando você for por aí, e a brisa soprar no seu rosto, não se sinta sozinha, você tem um mundo dentro de você.

Um dia de domingo, uma página de um diário

Exposição de Walter Firmo no IMS

Antes de sair de casa, passei glitter ao redor dos olhos. Vi uma moça usando glitter assim, gostei. Fiz também.

Saí.

O dia estava bonito, céu azul. Vi uma nuvem que parecia o desenho de um cérebro e depois vi uma outra que me pareceu o esqueleto de uma mão.

Não tive ninguém pra comentar isso, mas tenho certeza que se tivesse, a pessoa concordaria.

Peguei ônibus e metrô, o que eu até gosto porque me permite ouvir música sem interrupções.

Desci na Avenida Paulista e encontrei no meio do caminho meus amigos de música. Matheus usava uma camisa xadrez de cor azul, e parecia feliz, aquela felicidade que deixa a pele bonita. Matheus é bonito, e mais bonito ainda quando fala. Ganhei um abraço dele, e contei que comprei um ukulele. Ele me deu um mês pra aprender a tocar alguma coisa. Farei o possível. Ganhei um abraço.

Vi também o Chico. Hoje era dia do azul. Os olhos azuis do Chico estavam da cor do céu. Eles foram embora com os instrumentos musicais e eu fui em busca de um sorvete.

Tomei um sorvete de coco e chocolate enquanto caminhava pela Paulista. Tinha gente fazendo churrasco na calçada, achei engraçado.

Entrei no IMS e vi a exposição de fotografia do Walter Firmo, No Verbo do Silêncio A Síntese do Grito. Eu não sei, talvez seja o dia, ou a sensibilidade muitas vezes exagerada que eu tenho. Mas chorei vendo umas fotos, chorei porque achei lindas. Chorar de beleza, isso me acontece demais.

Choro de beleza. Se algo é lindo demais, me emociono, e me emociono através da água presente no meu corpo. Duas fotos eu senti com o coração, uma com dois meninos sorrindo, um deles com olhos brilhantes, olhos de criança. E outra de um senhor segurando um contrabaixo. A música, sempre há música.

Tirei fotos das fotos.

Fui para o cinema, e já sabia o que eu ia assistir, A Pior Pessoa do Mundo. Um filme norueguês que conta a história de uma mulher na casa dos 30 anos, vivendo nessa época extraordinária, a mesma época que eu, uma brasileira na casa dos 30 também estou vivendo.

Meu lugar na sala do cinema seria B6, mas a moça do caixa me deu a dica, “vá mais pra trás, a sala é pequena e a tela é inclinada”. Mudei para D6. E lá assisti o filme todo. Bonito, bonito.

A Pior Pessoa do Mundo é poesia, me deu a sensação de estar lendo um livro bom. Me deu uma vontade de encontrar esse livro pra não esquecer e reler sempre que possível. Mas era filme, vou ter que confiar na minha memória. Não vou entrar em detalhes, quero que você assista ao filme também.

Ainda mais se você for uma mulher na casa dos 30 como eu. Se for minha amiga, quero mais ainda.

Quando o filme acabou, eu chorei.

E chorei de beleza.

Chorei no caminho, ali na Paulista mesmo.

E limpei os olhos com os dedos, e quando olhei pra minha mão, meus dedos estavam brilhando por causa do glitter que passei ao redor dos olhos.

Fiquei pensando em tudo de bonito que vivi até agora, e das coisas lindas que vivi e vivo e que só terei consciência da beleza desses momentos daqui um tempo, porque ainda tem tempo, muita coisa ainda vai acontecer. E olha, foi muito estranho, mas eu senti de verdade que apesar de tudo, tá tudo bem sim.
E de algumas coisas eu já tenho certeza. Tive sorte, tenho sorte, por todos os acasos que a vida me deu, por todas as pessoas boas que encontrei e que me trouxeram mais amor, mais música, mais leveza, e até as não tão boas que me ensinaram de alguma forma a ter mais coragem.

A nova moda

Ser doce é tão fora de moda. A gente não pode ser amável. A gente não pode nem amar. Legal agora é ser blasé. O segredo é desinteressar. É isso que agora é o novo amor. Chamam quem vai no caminho contrário de pessoa emocionada. O charme é parecer uma pessoa anestesiada. Tava aqui pensando se isso não é golpe da indústria farmacêutica. A gente compra mais Zoloft, olhos marejados nunca mais. E aí quando vê tá só a música do Arnaldo Antunes, "Socorro, não estou sentindo nada". Socorro, ninguém sente mais nada! Nem quando dizem um "eu sinto muito". Eu tô fora de moda, não sou blasé. 

Nenhuma solução

Minha amiga acha que o mundo está carente de afeto.
Uma outra amiga acha que só tem maluco no mundo, e isso inclui a gente, só que somos menos malucas (segundo ela).
No bar, uma menina disse que apesar de tudo, precisamos confiar nas pessoas. Uma outra concordou, mas disse que precisamos esperar o pior sempre. Uma outra ouviu tudo e disse que queria chorar.
A menina que estava sentada na minha frente disse que o segredo é dificultar, porque todo desafio é melhor. A que estava do meu lado falou que não, e contou que a terapeuta disse que “Se você vai sofrer, dificultar pra quê? Faça o que você quer fazer!”
Eu tomei meu drink.